Tó, o jornalista inerte

Tó, enquanto jornalista, tinha visto muitas guerras, mas não sabia como reagir nas brigas entre os seus dois filhos. Ficava simplesmente a olhar e a registar sem nada fazer.

A história do Pirata do Colarinho Branco

Era uma vez um pirata que tinha um imaculado colarinho branco, que acompanhava com um fato de nobre azul e sua gravata de esperança. Sempre que podia ia ao bolso vascular com o seu delicado e fino gancho dourado. Por lá procurava tesouros contemporâneos, sempre fazendo o necessário cuidado para não se magoar com a sua própria ferramenta e arte de piratear.

História inspirada na tela O Pirata do Colarinho Branco

A Pedra e o Riacho


Uma pedra caiu, soltou-se da encosta.
Caiu verticalmente, à gravidade exposta.
Caindo, ganhou uma velocidade silenciosa.
Parecia inconsciente e nada ciosa
Do impacto que a esperava abaixo,
Onde nascia um tímido e imberbe riacho.

O estrondo foi tal como se previa!
A pedra em queda chorou como podia.
Saltaram-lhe as lágrimas emprestadas
Pelo riacho, que estava de mãos atadas.
Ela ficou obliterada e ele desconchavado.
A Pedra lascou, o Riacho perdeu o curso, deformado.

Da relação conflituosa a pedra desfez-se de desgosto,
Dela sobrou o seu centro, o seu coração agora exposto.
Ficou sentida desse impacto, do ressalto que a levou
E projetou para uma outra ravina, de onde não mais voltou.
O riacho lá recuperou. As suas águas mais abaixo se juntaram,
Também com a descida ganhou força e vigor. Nunca abrandaram…

A Pedra agora é areia, e o rio,
Nascido do riacho, agora é mar.
Envolvem-se, revolvendo-se, sem parar.
Recriam dramas e alegrias sem findar.
Fazem-no sem saber que este estágio
Está longe de ser um eterno adágio.

Abriu a Época de Natal

Abriu a época de caça! Coelhos e seus ovos descansam até à primavera. Agora ficam na mira as renas, para manchar de vermelho natalício a neve fria.

Dor de Cabeça Informática

Dói-me a cabeça quando passo pela tela…
Dói-me o cérebro! Como se isso fosse possível…
Dói-me do esforço desagradável de seguir a visível
Manifestação de pixéis, presentes nesta e naquela
Atividade de trabalho que se prolonga depois pelo lazer.
Doutro modo já não sei o que ao tempo fazer.
Mesmo o simples conviver e comunicar,
Faço-o pela informática, pelo teclado a clicar.

Quero descansar os olhos, mas já não sei.
Quero largar o computador e a dor que me causa.
Quero dizer aos outros, mas deixo-me ficar em pausa,
Sempre em frente ao monitor, àquela informática coroa de rei
Que nos oprime, Que nos obriga a curvar-nos perante a sua tecnologia.
E fico prostrado, esquecendo os sibilar da dor com aparente alegria.
Simulo o pensar no processador, sinto pelos gostos dos cliques,
Morro pelos vírus, enquanto me reciclo com máscaras chiques.

Um Segundo Antes do Gatilho

É agora! O Gatilho aperta!
O terror faz correr todas as excrescências.
Perde-se a construída forma humana.
O ser passará a coisa sem mais vivências.
A vida foi coisa irrefletida e mundana.

A morte faz esquecer o nojo e as maneiras.
Ao escorrerem as salgadas goteiras
Não limpam o cheiro das fezes,
Escorridas pelas pernas bambas,
Em desesperadas danças,
E acumuladas numa poça de esperanças.
Não existem outros revezes.

Morreu sem saber,
Sabendo o que é o desespero,
Mesmo até ao fim…

Mudar o Centro da Tempestade

A multidão estava ali. Só ele os separava dos odiados. Mais que medo, tinha vontade de virar costas e avançar com eles. Queira levar aquela tempestade ao coração de todos os males.

A Revolta da Literatura


As palavras escritas começaram a ouvir-se.
Outrora mudas, agora, devido à urgência, ouviam-se!
Ecoavam pelas estantes, em jeito de barafunda.
Desta, e daquela, prateleira a revolta era oriunda.
Queriam escapar à sorte moribunda de serem esquecidos.
Uniram-se, sentindo-se desesperados e perdidos.
Estavam habituados a ser incompreendidos,
Mas perante da redundante crise sabiam do seu potencial,
Sabiam como poderiam ajudar a vencer a estupidez habitual.
Só precisavam que os ouvissem, pensando e lendo.
Da frustração veio a rebelião à ignorância que era escravidão.
Juntaram todas as suas palavras escritas, concordantes e discordantes.
Queriam que soubessem do depois e o antes,
O bem e o mal, o sim e o não, isolados ou misturados.
Exigiram ser compreendidos e lidos, talvez racionalmente amados.
Queriam, acima de tudo, ser reconhecidos,
Para além das capas e cores em que se erguiam envolvidos.
Queriam que deles e com eles aprendessem, ser lidos para serem ouvidos.
Queriam ser ultrapassados e questionados, não simplesmente satisfazer,
Que os seus conhecimentos embutidos servissem para mais do que ler.
Por menos que isso, todos os livros do país uniram-se!
Os outros pouco neles procuravam o remédio, por isso manifestaram-se!
Queriam que os tais outros percebessem que a sua compreensão
Ajudaria a compreender tudo e os seus porquês,
E à construção depois da confusão.
Ainda noutros livros se há de registar se foi ou não em vão…

Onde fica o Lado Negro?

- Lord Vader, é aqui o lado negro?
- Não, é depois daquela luz.

Crenças Neoliberais


Vinham em fuga. Infelizmente para eles perderam o avião. Começaram a rezar aos santos neoliberais, e alguns de outras religiões. A multidão aproximava-se. O medo mudou visões.

Primeiras Chuvas de Setembro

Chove lá fora, inundando estes dias já cheios, perto de transbordar. A terra não absorve a água da mesma maneira, e faz um calor estranhamente salpicado de calafrios ligeiramente frescos. Alguma da água não chega a escorrer pelos corvos, estranhamente secos, à chuva. Apesar do tempo húmido, os ânimos andam quentes.

Um Auto-castigo, Individual e Coletivo


O ódio ao pai vinha de há muito tempo. Há anos que não o contactava, o passado era insuportável e vê-lo, ou falar sequer com ele, era um dos piores tormentos. Mas naquele dia telefonou-lhe:
- Vou ser ministro das finanças.
Seria mais uma forma de o castigar, pois todos o odiariam por isso, todo um país o odiaria, demolindo assim o velho pai também. Todos sofreram!

Crenças Neoliberais


Vinham em fuga. Infelizmente para eles, perderam o avião. Começaram a rezar aos santos neoliberais, e alguns de outras religiões. A multidão aproximava-se. O medo mudou visões.

As coisas das Manifestações

Tratam-nos pior que coisas!
Que estado de coisas este!
Não há coisa que nos valha!
Olhem! Vem ai mais qualquer coisa!
Mas será essa coisa solução?
Isso adianta alguma coisa?
Adianta dizer alto alguma coisa e tal?
Dessas coisas, por vezes, surgem outras coisas!
Neste momento, precisamos mesmo é de qualquer outra coisa!

Uma Nação que perdeu o Avião


Toda uma nação perdeu o avião rumo ao desenvolvimento e crescimento da qualidade de vida. Ainda dizem que não é um acidente. É uma calamidade.

"Perdemos" o avião...


Caiu? Morreram todos? Só escapou um cão que ia no porão? Ainda bem que ficamos sem dinheiro para poder viajar. Só esperamos não cair de outro modo, pois aviões para perder há muitos.

A Fria e Altiva Riqueza


De lá fiquei arrendatária
De esperanças sem pagar fiança:
A minha consciência diz-me assim.
Faço por não a ouvir. Esqueço de onde vim.

Projetei-me pelo capital.
Construíram-me em luxo,
Ignorando o meu original material.
Transformei-me num belo cartuxo,
Vazio de conteúdo. Perdi a transparência
Perdi a original inocência…

Nem ao espelho me reconheço.
Nas fotografias sorrio de modo diferente.
Nem esta sombra que arrasto conheço.
Ficou-me uma culpa persistente.
Fui edifício instável de adobe e cal.
Sou hoje um mármore frio e imortal.

Passeio-me de consciência presa.
Viajo pelo mundo a todos os cantos.
Arrasto-me majestosamente em frieza.
Dou-me ao mundo, ignorando os prantos.
Para escapar a mortalidade perdi a humanidade,
Esqueci-me de ter idade, da material dificuldade.
A melhor das comidas não saboreio
A melhor das texturas não me toca,
A melhor das fragâncias não cheiro.
A melhor das vistas a minha retina não foca.
Pois sentir é mais que usar dos sentidos,
Sentir é saber que os prazeres podem ser perdidos.

Desejo um desafio.
Desejo passar a fio
Por uma vida torta
Seguir por uma linha morta,
Como um fim que vem e é certo,
Encarar o destino como algo em aberto.


O meu Inerte Calo


Nasceu-me um calo.
Mas só agora dele falo.
Não foi no pé nem na mão.
Cresceu-me no conformismo,
Desenvolveu-se do estatismo,
Ganhou raízes de ilusão.

A cada esquina por dobrar
Me vem a maleita incomodar.
Sinto-me, sinto-o, mas aguento
Habituado à inércia. Sim, temo
O receio, o falhanço infértil e ermo.
Adio-me. Espero mais um momento

Enquanto procrastino, endureço
A rigidez do calo de que padeço.
Espero pelo dia em que empece,
Pela hora em que me tratem,
Que me curem e não maltratem,
Espero que um dia tropece.

Adiando fico adiado,
Parando fico parado.
Ansiando sem nada fazer
Pela cura, que pouco me importa,
Iludo-me sem tentar abrir a porta
Para a solução que só eu posso trazer.


Aparvalhadamente Enamorado

És horrível e feia,
Tão desprezível e insensível.
És insuportável e detestável!
Mas infelizmente estou apaixonado,
Com o discernimento toldado.
Fico neste estado aparvalhado.
Deixas-me desconcertado e atrapalhado,
Por vezes até contrariado e enervado!
Sinto-me confuso e perdidamente enamorado…

As Férias de Hoje

Anseio pelas férias,
Pelo verão de antigamente,
Aquele das tardes pouco sérias
Em que vivia despreocupadamente.
O Verão antigamente era imenso,
Nele uma segunda vida vivia.
Dele só me fica a nostalgia
Do tempo suspenso.

Mudaram as férias.
Mudaram os labores.
Acompanham-me tensões e lérias,
Sabores e impensáveis odores,
Segregados por o que esperava vir a ser.
Sabia lá eu o que seria, mesmo sabendo
O que ser queria. Assim, fui-me apercebendo
Das construções fantasiosas do crescer.

Mas vou sempre de férias,
Desejando ter as antigas
Infindáveis noites galdérias,
Onde saia comigo mesmo e amigas
Ideias de uma liberdade iludida.
Vou aproveitando os parcos dias,
As bênçãos da vida moderna.
Aproveito-os tentando uma vivência eterna.
Mas essas liberdades são vãs comédias,
Ri-o tudo numa só vez! Lá volto depois à caserna.
Esperam-me depois as rotineiras e suas tragédias.

Dizer para crer no engano do que se diz


Quando alguém se dizia ser seu amigo ele ficava de imediato preocupado. Quem repete até à exaustão o que diz ser é porque dúvida que é de facto. Ele não se cansava de repetir isto.

Mais um condenado à morte


Sentia que os dias findavam. Tinha feito muitos, mas este seria o último dos seus autorretratos. Só agora ficava evidente que, desde a nascença, era mais um condenado à morte.

Viver na Quente Incerteza

Lá fora tudo se derrete
À sombra de um sol que funde,
Com a luz que lhe compete.
Ninguém evita que se afunde
A massa pastosa da outrora sólida
Estrutura, agora flácida e estólida.

A ruina é incerta.
A queda variável.
Surge uma aberta
Pouco ou nada viável.
À falta de alternativa
Prossegue a comitiva,
Na esperança de encontrar
As bases sólidas onde fundear.

No exterior teme-se a altura.
No interior teme-se a ruina da pedra.
Junto à terra foge-se à abertura
Que do sismo por vezes medra.
Pelo ar corre um vento quente
Errante que seca e mirra a mente.

A segurança desapareceu,
A ilusão desfaleceu.
Mas ficámos mais fortes na fraqueza.
Voltámos à primordial rudeza.
Voltámos a ser sobreviventes na incerteza!

Famílias paralelas (paradoxais)

O pai, conservador, tinha um caso com um homem. A mãe, feminista, comprovava que, mais que tudo, gostava de mulheres. Os filhos, em segredo, fizeram-se adotar por 2 país e 2 mães.

O consciente medo da sabedoria arrogante


Dou a volta à minha fortaleza,
Com a minha arrogância de realeza,
Observo das frestas à distância.
Tudo continua imundo em constância.
Lá continuam na ignorância do comer,
Alimentam-se só porque tem de ser.
Beber sem satisfazer uma sede de saber,
Desse desconhecido não tiram prazer.

Tão voraz como os demais,
Alimento-me sem comensais.
Não deixo ninguém chegar perto,
Atras da muralha. Fico no deserto
Da companhia de mim mesmo,
Sempre o mesmo próprio esmo.
Mas não subsisto sem o alheio,
Quer seja de superfície ou recheio.
Sou hipócrita no forte que me abriga,
Sou incoerente  por evitar o ataque e briga.

Alimento-me daquilo que gosto
Longe de estar justaposto ou exposto.
Como sem maneiras nem galanteias
De o partilhar com as assembleias.
Sou um nobre mordaz e arrogante
Que critica de escudo acutilante.
Mas pelo menos sei que sou assim
Um sem fim consciente de mim.
Para sempre viveria no castelo
Feito de ilusões onde me aquartelo.
Dos que diminuo uso para comparação
Alimentando a ilusão da dominação.

Espero que nunca me destronem,
Que nunca fraco me encontrem,
Pois não saberia viver de outro modo.
Não saberia viver em comunidade,
Não conseguiria viver sem a identidade
De me enganar, em jeito de vaidade,
Com o meu superior saber de superioridade.

Talvez um dia encontre a paz interna
Para me fazer abrir as portas e caserna.
Talvez um dia derrube as torres e muralhas,
Encha o fosso e reutilize pedras com talhas.
Se nas demolições por cá ficar sepultado
Talvez um dia seja por quem critico amado.
Eu próprio comia sem odre o putrefacto
Para me tornar mais vazio. Correria pelo mato!
Mas só o faria se soubesse que a humildade
Verdadeiramente realizasse a humanidade.

Travessia no deserto

Estava rodeado de pessoas, num mar de gente galhofeira. Não se conseguia passar. Ambicionava um deserto onde pudesse fazer uma longa travessia, somente com os seus pensamentos. 

Dia Happy em Leiria

A alegria teve um dia
Que rimou com Leiria.
As ruas dela mudaram,
Uma outra cor ganharam.
Alguns, poucos, sonharam.
Mais alguns concretizaram,
Muitos mais se espantaram.


Chegou cedo a madrugada,
Nunca Leiria teve tal alvorada.
A cidade viu sem se reconhecer,
Não conseguiu, de início, compreender
Mas, estranhado, lá disse por fim sim,
Disse-o sorrindo e brilhando assim:
Abriu-se aos balões, abraços e carinhos;
Alegrou-se com novas luzes nos caminhos;
Deixou-se inspirar pelas escrituras murais;
Recebeu elogios de atores e pivôs brutais.

Golpe de Estado na Cozinha

Teve um golpe quando tinha estado a governar. Mandava sempre sem olhar para si e para os outros. Um dia, enquanto corta e dirigia a cozinha, cortou-se. O seu estado mudou com o golpe.

Uma busca livresca de final de tarde

Uma cidade corrida, quilometros percorridos, suores escorridos e um cansaço corporizado na busca por um livro. Talvez o amanhã o traga. Até lá fica a vontade de ver o que nele se fecha

A contradição da consciência pecaminosa

Doía-me enquanto me satisfazia. Aquilo era errado. Mas quem me recriminaria? Ninguém, só eu! Mas ninguém valorizava mais a minha própria opinião que eu! Como faria dai em diante?

Decisões sem preparações

Decisões decisões…
Mesmo tendo esperado certas aparições,
Surgem certas alturas onde muitas são as solicitações,
Para muitas decisões sobre essas próprias manifestações.
Quem quer acaba por encontrar. Do dilema para a decisão,
Apesar da abstenção ser sempre uma válida opção.
Sem preparação não poderá haver alguma realização.

Os “ões” e os “ãos” ou o “ão” não são em vão.
Quando não se sabe maior reflexão
Sobra rimar para dar sentido.
Pelo menos fica mais no ouvido,
Pelos menos os pensamentos
Que levam às decisões não parecem tormentos,
Nem lamentos…

Um domingo à tarde como os outros

Oh não! Não há mais tremoços? Então e agora? Terão de servir as pevides… O que vale é que o mar nunca nos falha, pelo menos não tanto como nós a ele. Só ao Domingo nos lembramos dele…

Falha na defesa ao atacar


Enquanto defendia quase se esquecia que atacando o efeito era igual. Ainda foi a tempo. Pegou nas armas atrás do escudo e partiu ao ataque. Acabou por descurar na defesa, na sua.

As obras de sabores e paladares reaproveitados


Sobrou tanta comida… Que fazer a tudo isto? Reaproveita-a. Não é isso que fazemos a cada dia que passa e cada ano? Sim, e os sabores e paladares vão mudando com cada nova acumulação. 

Aniversários constantes

Quando nascemos em mais que um dia, quando deveremos festejar o nosso aniversário? Bem, o melhor é irmos festejando cada dia, pois a morte também quererá fazer os seus festejos

O Abraço do Lis

Liso corre o Lis,
Lívido e sem vis
Hábitos de outrora.
Longe vai a hora
Com que galgava
A sua margem vaga.
Longe vai o tempo
Do certo contratempo
Que causava ao povo.

As invasões habituais longe lá vão.
As inundações catastróficas são
Só já uma possibilidade centenária.
As ruas, modernas e atuais, apesar disso,
Podem continuar no seu reboliço
E vida sem a água como adversária.

Corre o lis baixo.
Corre vale abaixo.
Corre manso debaixo
Dos muros que o guiam,
Dos olhares que o vigiam,
Dos elementos que o contagiam.

No fundo do seu leito,
Será que lhe dará jeito
Avistar as pedras talhadas
Colocadas já lavradas
Na amiga montanha,
Antiga e próxima penha,
Amiga do tempo antes desta raça
Que o encanou e a ela empedrou de baça.

Pedras humanas que rio e montanha embaraçam
Aproximam vidas humanas nas ruas e praças.
Por essas construções as naturezas se trespassam,
As edificações naturais são revestidas por couraças.
Dessa urbana e centenária acumulação nasceu cidade.
Nasceu leiria que olha rio e montanha, que olha com saudade
Um rio que a abraçava e agora corre submisso, por vezes omisso
Às suas próprias necessidades e vaidades dos vários tempos.
Nem subindo a cidade ao castelo de lá se vê o lis belo, nem isso.
Hoje a cidade já só abraça, mas não pode ser abraçada!


Os fins e os papeis que voam

Das secretárias nascem papeis.
Dos computadores tecla-se sem fim.
As pastas arquivam relatórios e leis.
O correio e expedição deslizam pelo cetim
Do manto que envolve a diária rotina,
Que à noite termina e logo começa na vespertina.

As tarefas mecânicas auxiliadas pelas humanas biologias
Transformam as atividades e condicionam as terminologias
Como um molde rígido, inquebrável repleto de uma patologia
Própria da humanidade contemporânea, da sua prisão de fantasias,
De que o sucesso é o fim último e o bem mais precioso deste tempo.
Vã inconsciência de quem abdica de apreciar o novo, o contratempo!

A rigidez da formalidade, até do que parece informal desgasta.
É nódoa que não se afasta, que corrói e mói porque devasta
A possibilidade da retidão na irreverência, mostrando competência.

Voltam e vêm os papéis, muitas vezes eletrónicos.
Redefinem-se também os outros papéis sociais,
Os tais que estão em constante mutação. São lacónicos!

Porventura rotinas são cada vez mais disfuncionais.
Porventura há quem as procure intencionalmente por naturais.
Porventura são afinal importantes para que constem dos anais…

Sessando o dia vem a noite sem inocência.
Sessando a irreverência vem a complacência.
Sessando o sonho fica só a eloquência
De poder sonhar e escapar à demência!

Uma insolação e ilusão

Quando à rua saio
sou alvo de um raio.
sou alvejado e trespassado
sem receio de ser magoado
do beneficio que o sol traz,
desse acaso que satisfaz.

Astro solar por perto há só um
mas a necessidade que cria
é incontável e quase sombria.
A necessidade existe enquanto há vida,
Independente da vinda ou ida,
Das almas, das órbitas dos planetas,
Dos egos que ofuscam outras vedetas,
Que não são mais que satélites
Insignificantes e iludidas elites.

Apesar do que é próprio aos próprios,
Do que faz distinguir uniões e consórcios,
Cada um por si precisa do seu quinhão,
Da luz que é energia e guia contra a servidão,
De ser senhor da vontade dos servos,
Que não sabem que podem ser mais que lerdos
Seguidores da inevitável vontade da escravidão.

Vendo o sol a cair ao fundo
Penso no absurdo do pensamento,
Nos delírios do sol em andamento.
É certo que também é infecundo,
E não apenas a fonte inesgotável
De obra gloriosa e durável.
Muita é a construção abalável!

O Sol que ajuda à imaginação.
O Sol que combate a depressão.
O Sol que faz novas edificações
Produz muitas ilusões enquanto
Aquece os expostos corações,
No seu natural diurno manto,

O tempo que nunca para

Pode o tempo ter gestão?
Pode o relógio ser manipulado
Controlado e rearrajado, por nós alterado?
Pode, mas só numa manipulação
Mecânica, momentânea e inútil,
Coisa subtil, pouco mais que ilusão fútil.

Não é ilusão, o tempo não para,
Como não para um viver consciente,
Uma ferida benéfica que sempre sara.
Atrasar e não viver como próprio ente
É não ser presente na próxima consciência,
É não ser o todo da nossa existência.

Não podendo procrastinar em verdade,
Resta-nos acomodar à condição da irmandade
humana que partilhamos e nos define,
Com a vontade de controlo que nos comprime,
E nos obriga a gerir os soltos vimes,
Para fazer o cesto entrelaçado de tempos
Em uniões tecidas de muitas lides,
Muitos compromissos e contratempos.

Resta-nos então saber tecer,
Ter a capacidade de criar um hábito
De fios de tempos para vencer
As limitações e o óbito
De desaparecer sem tempo,
De não ter um  que nos sirva de alento
A querer ter mais para gerir,
Mais tempo gerir sem anuir

Uma punição evitável

As vozes sussurravam!
Os olhos viam enquanto pestanejavam!
O cérebro fervilhava de actividade,
Num turbilhão que antecipava a inevitabilidade
De algo que não pode ser previsto,
Mas que podia ser, de antemão, visto.

Dentes tragam palavras,
Línguas dançam aos sons
Dos invejados dons.
Tecem-se as malhas
E perscrutam-se as falhas
Para tornar funesta
A mais bela intenção.
Esquecendo tudo o resto
Recorre-se à punição…

Um amor impossível destruído pelos acasos da História no Porto

Os Franceses vêm ai – Dizia alguém correndo aterrorizado rua abaixo.

João e Maria, no interior dum casebre escapavam aos olhares da sociedade portuense, que não compreendia este amor entre um professor da Academia Real de Marinha e Comércio e uma peixeira.

Vou ao encontro dos franceses, como homens de razão o melhor será com eles negociar e evitar a catástrofe – disse João.

Maria não o conseguiu demover e fugiu rumo à Ribeira. Provavelmente Maria foi mais uma que o rio levou ao atravessar a ponte. João parece que se enganou, foi assassinado… pela razão desconhecida de um exército em fúria.

A dança lenta da Lua

A lua arrasta-se lenta e cansada.
O negro da noite segue-a igualmente taciturno.
Ambos formam um par que faz o seu turno
Nessa dança perfeitamente ensaiada.
Essa lentidão da noite não passa,
Seja a história pura ou devassa.


A lua que ilumina as noites
Lentamente sobressai do negro,
Sobressaindo assim o próprio negro.
Pois os contornos definem as aparências,
Mesmo as noturnas e suas remanescências.
Da noite sobressai o andar da lua pelas noites.


Que fará então a lua quando está ausente
Porque em certas noites se esconde?
Nas suas lentas saídas vai onde?
Parece que nem parte nem surge alegre,
Parece  triste, quer nasça ou se desintegre.
Provavelmente o que a devasta,
quando se aproxima ou afasta,
É fazê-lo sempre na mesma pressa…

As naturais barreiras urbanas

O valor de um espaço livre vazio no centro
Quando o urbano ocupa e dita as leis,
A ordem e os movimentos de dentro,
Evidencia que os urbanos abrigos e viários anéis
De outros tempos não previram as atuais
Necessidades de ir além telhados e murais.

Se a cidade liberta os espíritos
Restringe também a natureza.
Se a cidade aproxima os sítios
Aproxima também a avareza
E a insensibilidade à pobreza.
A cidade afasta-nos da natureza,
Mas não da nossa essência humana,
Pois é só nossa a criação urbana.


Qual será a nossa natureza então?
Se o que nos é natural é criar a imperfeição
Como poderemos aspirar à edificação,
De algo mas perto da perfeita ilusão?
Estou certo das nossas limitações,
Mas igualmente consciente das legiões
De Homens e Mulheres que errando querem melhorar,
Que da ignorância querem construir diferente e inovar,
Quem sabe mesmo novas cidades erguer,
Quem sabe as atuais reconverter,
Para a nossa artificial e tão própria obra,
Toda a cidade que cresce e se desdobra,
Seja aberta, livre à mobilidade de ideias,
De entes e suas mentes, sós ou em assembleias
Sem serem limitadas pelas humanas e urbanas barreiras.


Sem limitações de movimentações,
Todos poderão chegar ao seu espaço,
Contribuir num fraterno abraço,
Para uma comunhão de diversas opiniões,
De onde surjam as que melhor sirvam,
Aos próprios e aos outros que em irmandade vivam.
Quero uma irmandade universal mas onde exista o individual!
Quero algo mais artificial que a condição humana natural,
Tão não artificial que quebre as naturais barreiras urbanas humanas!