O Coelho Amuado e o Pato das Portas Travessas

Apesar de a Quinta estar num estado miserável, o Coelho lá continuava a governar. A sua própria coelheira, o centro da sua liderança e de protecção contra os animais que governava, ia enferrujando. O Coelho temia, cada vez mais, pela sua segurança. Crescia nele o medo de que lhe pusessem as patas em cima. Não era caso para menos. A Quinta estava arruinada, em todos os sentidos, já sem cercas e outros normais arranjos que a pudessem fazer prosperar. Com as reduzidas doses de ração disponíveis, que pouco ou nada alimentavam, já poucos tinham as forças de antigamente. Muitos animais tinham saltado, escavado ou voado, enquanto ainda podiam, para fora dali.
O Coelho, de início, pensou que ter menos animais na quinta seria bom, pois seriam menos a comer e a ameaçá-lo. Mas percebeu que a maioria dos que ficavam já tinha os pêlos e as penas brancas, e que estavam cansados para trabalhar e produzir o necessário para todos se alimentarem e fazerem a Quinta prosperar. Enganou-se depois ainda mais quando confundiu o cansaço dos mais antigos com a vontade de desistir. Esses animais que escaparam ao talho de outros tempos não estavam com vontade de desistir agora.
Já o Pato afastava-se sempre que podia do ninho que tinha perto da coelheira. Apesar de não aguentar voos longos, não deixava de tentar voar o mais que podia para longe do amigo Coelho sempre que algo corria mal. O Pato não perdia uma oportunidade para usar de Portas travessas e escapar, mas sem deixar de vez o ninho de poder próximo do Coelho.
Os animais que ainda iam sobrevivendo começaram a comer-se uns aos outros, segundo a lei dos mais fortes que reinava na natureza selvagem. Ficaram cada vez mais fracos e desunidos, desesperando para sobreviver àquela selvajaria. Os talhantes, vendo a ruína e incapacidade de resistir dos animais da Quinta, atacavam com cada vez mais violência. Vinham com o consentimento do Coelho e do Pato, abatendo os animais mais vigorosos e saudáveis que apanhavam em troca de migalhas que mal chegavam para alimentavam os outros. As leis antigas da Quinta, e as da própria Natureza, sempre tinham exigido sacrifícios, mas a lei do Coelho Amuado e do Pato das Portas Travessas parecia trazer sacrifícios sem sentido.
No total desespero, havia já quem defendesse o fecho da Quinta e que se optasse pela anarquia dos tempos em que todos os animais eram bravos. Outros diziam que, com sorte, ainda viria um dia um caçador que os livraria de alguns dos seus, daqueles animais que sendo bravos de facto se disfarçavam de mansos. Os mais sábios lembravam que isso não resolveria nada, e que se não fosse a mobilização de todos os animais, aproveitando com respeito e compreensão mútua as virtudes de cada um, os problemas comuns jamais seriam resolvidos.
 
Nota: Texto criado para publicação no projeto online P3 / continuação de "A História do Coelho Amuado"
 

 

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