Desabamento matinal

Quando cheguei,
Desabou tudo.
Fundo respirei
Saltei e corri.
Efervesci,
Por momentos mudo,
Por momentos gritando.
Depois de muitos depois,
A enxurrada,
resultante da lavagem à pressa,
Lá saiu porta fora.
Fiquei descansado enxaguando
Aquela destruição arrastada.
Então, sem mais demora,
Podia começar o dia.

Um dia de vento com areia

Naquele dia de Novembro estava vento. A areia acompanhava-o, encorpando-o e transformando o movimento do ar num apedrejamento contínuo de pequenas partículas. Por vezes esse afrontamento e agressão causavam apenas o toldar da visão coletiva. Não matava. Não feria, mas massacrava e condicionava a capacidade de ver de todos. 
O vento continuado movimentou do seu espaço natural um exército de inertes. Depositou no campo de batalha fortes e trincheiras. Modificou-se o ambiente. Alterou-se a realidade. A mudança era assim uma realidade física, mas uma ilusão imaterial de mundo transformado em estranheza e artificialismo.
Assentados os inertes, por falta de melhor atividade, tendo em conta que sempre estiveram em movimento e conflito, iniciou-se mais uma guerra. Não havia grandes motivos para tal. Tal como não havia em todas as outras que se tinham dado. Era apenas uma forma de existência. Combatiam para existir, morriam para não viver sem razão de ser. No extremar das posições o encaixe e imbricamento nas grandes massas rochosas deu-se por acaso, conforme rolavam, ora para um lado ora para outro sem intenção fundamentada. Rolavam pela simples razão de se manterem ativos, querendo ser outra coisa que não inertes.
As rochas sedimentares resultantes viveriam feridas e esburacadas até desapareceram quando de novo se convertessem em areias esvoaçantes e levadas pelo vento. Era só mais um ciclo, o devir de uma forma de existir tão própria de uma espécie inerte em pleno movimento produtor de cristalização, uma espécie imortal sem vida.

Eu Hannibal Lecter - Micro-conto

Estava com uma larica por novo conhecimento. Decidi ir direito ao assunto, mas não gostei da cor, faltava vida àquela massa cinzenta. Que pena ter-me esquecido do ketchup

Crónica sobre Crónicas de Uma Caravela

Comecei a leitura sabendo somente que estava num porto pronto a embarcar. Ali, no meio de tantas embarcações estava uma caravela. Não conhecia o capitão, mas quando me abeirei dele, a sua simpatia transmitiu-me confiança. A sua figura transmitia força e a pureza de um rosto jovem mas experiente, que até podia estar a fazer a sua primeira viagem, mas que conscientemente não tinha medo do desconhecido e de ir além dele. Parecia preparado para todas as adversidades e para a aventura, previamente munido da arte e engenho de navegar.
Como desejava viajar, deixei-me levar pelo convite e subi a bordo daquela singular caravela. Deixei-me navegar rumo ao desconhecido, definido pelo horizonte longínquo e continuamente revelado por cada desfolhar de página.
Cada temporal obrigava a lutar contra vagas de questões crescentes, mas que íamos ultrapassando com o ganhar de experiência. Cada temporal dava lugar uma calmaria de autoconhecimento. Nas constantes paragens em terra também a rebentação nos dificultava as manobras. Junto aos portos improvisados usava-se da minucia para vencer o medo de encalhar.
Os oceanos e mares de questões ultrapassados fizeram-me questionar. Questionei-me sobre os conceitos e significado das palavras, das novas e antigas descobertas durante a viagem. Parei, vezes sem conta, a olhar para as águas em movimento, capazes de espelhar o mais conturbado dos sentimentos. Movimentei-me muitas outras, admirando a lentidão do mar calmo, onde as memórias se acumulam em camadas de águas profundas.
Mesmo longe de tudo, jamais podíamos esquecer a pátria. Ela estava lá, sempre presente em memória, em cada corda, em cada nó, em cada pedaço daquela madeira da nossa terra, em cada vela daquela caravela.
Só um capitão especial poderia traçar aqueles rumos. Apoiava-se nas cartas de marear, dominava o astrolábio, a bussola e o compasso, mas muitas vezes preferia navegar à vista, deixando-se guiar pelas emoções. Nunca naufragámos. Arriscámos várias vezes, mas o jeito natural de navegar por águas desconhecidas era prova de um saber de experiências feito – como dizia o poeta.
Por vezes as viagens eram longas, e naqueles demorados momentos em mar aberto a intimidade acontecia naturalmente. Podíamos ter passado essas horas entretidos com futilidades. Era uma opção. Mas era com a maior das riquezas humanas que nos ocupávamos: as emoções que tantas vezes se transformação em razão.
As viagens iam-se sucedendo, dia-a-dia, página a página, saboreadas como um ritual onde os tempos são importantes e as rotinas se tornam novidades constantes.
No convés encontravam-se os marinheiros diariamente. Davam tragos em garrafas de gin. Fumavam constantemente, quase sempre falando de experiências e aventuras passadas, fascinados pelas praias do mundo e outras paisagens. Vi em todos aqueles homens do mar heterónimos do capitão, mas preferi não especular. Tentei simplesmente conhecer cada um deles.
Cheguei ao fim quase sem dar por isso. Fiquei com a sensação de que haveria muito mais por onde rumar: águas novas por descobrir, novas terras por explorar e portos por conhecer.
Despedi-me e segui navegando sozinho entre o edificado da minha cidade. Fiquei a pensar na caravela que me acolheu. Talvez volte a encontrar o mesmo capitão, talvez na mesma embarcação ou noutra maior. Talvez possa ser possível viajar novamente. Espero que sim!
 
 
Nota: Este  texto foi criado para a apresentação do livro "Crónicas de Uma Caravela" de Gualter Gil, tendo sido lido nesse evento em homenagem ao autor e sua obra. A apresentação decorreu dia 18 de Outubro de 2014 da Biblioteca Afonso Lopes Vieira em Leiria.

Alfaiate

Produtor de armaduras em tecido.
Artesão de fio em conjunto torcido.
Mestre do corte e costura,
Do disfarce que emoldura
O corpo dos Homens reais
E seus aspetos formais.

Coze com astúcia a veste,
Casaco a casaco, calças a calças,
Tenha botões, pregas ou alças,
Cada veste à medida própria única
Para cada ambiente, mesmo o agreste,
Mesmo o mais leve e adequado à túnica.

Do seu labor podemos partir,
Seguir pela aventura sem medo,
Rumo aos desafios por vir.
Podemos ir protegidos,
De confiança ungidos,
Pois recebemos aquela armadura,
Aquela maleável couraça que dura
E nos protege da desventura,
Do perigo para a integridade
Que aflige qualquer postura,
Pois em todas as posições
Apenas a pele protege as emoções.


Nota: Poema incluído no projeto "O Valor do Labor Tradicional", vencedor do Prémio Literário Padre João Maia - 2014

Agricultor

Criador do mundo rural.
Rude e agreste vida a sua
Onde se ocupa do natural
Labor, sem que possua
Mais que só terra e verde,
Apenas o trabalho que herde.

Agarrado ao chão
Ama-o com paixão.
Criou nele longas raízes.
Dele viveu tempos felizes,
Dele viveu amarguras de escassez,
Conheceu colheitas de viuvez,
Acumulou outras de abundância
Que lhe trouxe momentos de ânsia
Porque nunca conheceu a cupidez.

Da magreza da fertilidade
Mantém toda a comunidade,
Alimenta-os, garante-lhes os ofícios.
Garante a vida na aldeia,
A vida na cidade, seus edifícios,
Suas obras de arte e até a ideia,
Cultivada pelos distantes intelectuais
Olvidados do agricultor nos seus anais.


Nota: Poema incluído no projeto "O Valor do Labor Tradicional", vencedor do Prémio Literário Padre João Maia - 2014

Memória presente de uma Avó

Dos muitos anos que passaram, passamos alguns contigo, uns mais que outros. Os filhos, netos e bisnetos, em toda a sua vida sempre te conheceram. Os que cá andam há mais tempo, mais tempo contigo estiveram, fosse naquela cozinha, junto ao lume daquela lareira, ou pelas terras, pelos pinhais e eucaliptais quando tratavas das árvores que nos davam o calor no inverno e com as quais se faziam os bancos onde nos sentávamos juntos. Contavas-nos história, do agora e do antigamente. Fazias aquela comida simples mas que tinha um sabor especial. Falavas da vida, da tua e das outras que conhecias. Falavas de como eram duras e sofridas. Falavas do trabalho que sempre enfrentaste com coragem e incentivavas que seguíssemos pelo mesmo caminho. Mas, falavas com uma sabedoria de quem viveu muito, e de quem pensava no que viveu. Falavas com um tom sério, mas também, sempre que possível, encontravas nessas histórias um motivo para as poder terminar com um sorriso.
Hoje continuas a falar, partilhando connosco a tua riqueza de vida. Hoje continuamos a ouvir esperando por aquela lição e aquele sorriso que remata.

Um país evacuado

Em 2015 foi decidido por referendo que Portugal seria evacuado! Todas as pessoas sairiam de Portugal. Ficariam somente alguns técnicos para assegurar a manutenção e conservação das infraestruturas, e militares para garantir o cumprimento do projeto. Os promotores desse plano defendiam que o problema de Portugal eram os próprios portugueses. Estranhamente, como nunca tinha acontecido na nossa história, a esmagadora maioria aceitou sem protestar a validade desse pressuposto. Assim foi feito um acordo com os restantes países da União Europeia. A dívida de Portugal seria perdoada, mas todas as pessoas em idade ativa estavam obrigadas a trabalhar nos países de acolhimento, descontando uma parte considerável dos seus vencimentos para amortizar a dívida nacional. Os idosos e incapacitados seriam acolhidos também, fazia parte do contrato. Somente 20 anos depois o país poderia ser reocupado, garantindo-se que tudo estava em condições para o retorno em massa da população já aculturada. Os portugueses seguiram voluntariamente para a diáspora que os tentaria transformar noutra coisa qualquer.
O objetivo do êxodo em massa era, acima de tudo, fazer uma revolução cultural - uma mudança total de mentalidades e hábitos. No fundo, acabou por ser uma das maiores tentativas de extermínio cultural do planeta. Mas em Portugal ficaram alguns resistentes que passaram a viver na clandestinidade. Formou-se uma sociedade de resistentes que se autogovernava de um modo eficiente e democrático como nunca se tinha visto em Portugal, apesar de todas as dificuldades, das perseguições e dificuldades de toda a espécie. Lutavam como podiam contra a opressão de um país desocupado mas rigidamente patrulhado por forças militares afetas ao contrato celebrado pela maioria.
A calamidade consumou-se mas a esperança não morreu naquele que era um Portugal esvaziado, mas sempre combativo. Os portugueses obrigados a viver fora da pátria, haveriam de ficar descontentes com o destino que haviam escolhido. Na desmotivação da expatriação motivar-se-iam para reconstruir um novo Portugal aquando da volta. Trabalhariam o mais que podiam para um dia poder regressar, sentindo que, por melhor que fosse a sua qualidade de vida, a impossibilidade de viver no Portugal parte de si era insuportável. Cresceria o mito do regresso a um país que afinal não era tão mau como se pensava.
Os que ficaram e os que partiram, mesmo sem saberem, estavam unidos e convencidos de que Portugal poderia ser reinventado. Mas quando chegasse a hora de voltar será que ainda se lembrariam do que deixaram e os levara ao desvario coletivo? Será a aculturação possível de reverter? E será que os portugueses de fora e de dentro saberiam conviver? Só o futuro o diria.

Nota: Texto criado para o P3

O último concerto

Orquestrou tudo para durar 7 dias. Desafinou na última música do 6º dia enquanto criava a humanidade. Ficou farto, por isso decidiu parar um dia antes. Seria o último seu concerto