Crónica sobre Crónicas de Uma Caravela

Comecei a leitura sabendo somente que estava num porto pronto a embarcar. Ali, no meio de tantas embarcações estava uma caravela. Não conhecia o capitão, mas quando me abeirei dele, a sua simpatia transmitiu-me confiança. A sua figura transmitia força e a pureza de um rosto jovem mas experiente, que até podia estar a fazer a sua primeira viagem, mas que conscientemente não tinha medo do desconhecido e de ir além dele. Parecia preparado para todas as adversidades e para a aventura, previamente munido da arte e engenho de navegar.
Como desejava viajar, deixei-me levar pelo convite e subi a bordo daquela singular caravela. Deixei-me navegar rumo ao desconhecido, definido pelo horizonte longínquo e continuamente revelado por cada desfolhar de página.
Cada temporal obrigava a lutar contra vagas de questões crescentes, mas que íamos ultrapassando com o ganhar de experiência. Cada temporal dava lugar uma calmaria de autoconhecimento. Nas constantes paragens em terra também a rebentação nos dificultava as manobras. Junto aos portos improvisados usava-se da minucia para vencer o medo de encalhar.
Os oceanos e mares de questões ultrapassados fizeram-me questionar. Questionei-me sobre os conceitos e significado das palavras, das novas e antigas descobertas durante a viagem. Parei, vezes sem conta, a olhar para as águas em movimento, capazes de espelhar o mais conturbado dos sentimentos. Movimentei-me muitas outras, admirando a lentidão do mar calmo, onde as memórias se acumulam em camadas de águas profundas.
Mesmo longe de tudo, jamais podíamos esquecer a pátria. Ela estava lá, sempre presente em memória, em cada corda, em cada nó, em cada pedaço daquela madeira da nossa terra, em cada vela daquela caravela.
Só um capitão especial poderia traçar aqueles rumos. Apoiava-se nas cartas de marear, dominava o astrolábio, a bussola e o compasso, mas muitas vezes preferia navegar à vista, deixando-se guiar pelas emoções. Nunca naufragámos. Arriscámos várias vezes, mas o jeito natural de navegar por águas desconhecidas era prova de um saber de experiências feito – como dizia o poeta.
Por vezes as viagens eram longas, e naqueles demorados momentos em mar aberto a intimidade acontecia naturalmente. Podíamos ter passado essas horas entretidos com futilidades. Era uma opção. Mas era com a maior das riquezas humanas que nos ocupávamos: as emoções que tantas vezes se transformação em razão.
As viagens iam-se sucedendo, dia-a-dia, página a página, saboreadas como um ritual onde os tempos são importantes e as rotinas se tornam novidades constantes.
No convés encontravam-se os marinheiros diariamente. Davam tragos em garrafas de gin. Fumavam constantemente, quase sempre falando de experiências e aventuras passadas, fascinados pelas praias do mundo e outras paisagens. Vi em todos aqueles homens do mar heterónimos do capitão, mas preferi não especular. Tentei simplesmente conhecer cada um deles.
Cheguei ao fim quase sem dar por isso. Fiquei com a sensação de que haveria muito mais por onde rumar: águas novas por descobrir, novas terras por explorar e portos por conhecer.
Despedi-me e segui navegando sozinho entre o edificado da minha cidade. Fiquei a pensar na caravela que me acolheu. Talvez volte a encontrar o mesmo capitão, talvez na mesma embarcação ou noutra maior. Talvez possa ser possível viajar novamente. Espero que sim!
 
 
Nota: Este  texto foi criado para a apresentação do livro "Crónicas de Uma Caravela" de Gualter Gil, tendo sido lido nesse evento em homenagem ao autor e sua obra. A apresentação decorreu dia 18 de Outubro de 2014 da Biblioteca Afonso Lopes Vieira em Leiria.

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