Novo turno

Novo ano,
Novo turno,
Em que todos poderão jogar,
Na sua vez
Ou em conjunto.
Cooperando ou competindo.
Vence quem joga,
Sozinho ou em grupo.

Somos iguais,
Seguindo as mesmas regras,
Mesmo sem as conhecer,
Pois basta querer aprender
O papel de cada um.
Ganhamos ainda mais
Quando alguém melhora
O jogo coletivo.

Mas afinal,
Na contagem dos pontos,
No confirmar dos objetivos,
No levantar da glória,
Ou quando o tempo se esgota,
Só perde quem passou
O ano sem jogar,
Sem viver.

Consumos de Natal

No nosso tempo o consumo é uma forma de ser. Existindo assim somos impelidos a ser pessoas que consomem. No Natal consumimos mais, logo seremos mais pessoas por isso? Oferecemos consumindo. Pensamos forçosamente em quem gostamos porque o demonstramos no consumo que gera presentes. Pelos menos no Natal, enquanto consumimos, não pensamos apenas em nós, pois pensamos no consumo dos outros.

Tirania do ecrã

Estou amarrado,
De olhos vidrados
E dedos deformados
Enquanto me curvo
No narcisismo tecnológico.

Sou eu, projetado virtualmente.
Eu que nunca fui assim nem serei;
Um modelo de qualquer coisa,
Melhor porque me edito e re-escrevo.

Não sei viver sem este ciber-ego,
Não sei viver sem rede,
Não sei viver sem estes dois dedos
De conversa manipulada em tempo irreal.
Polegares deformados pressionam-me,
Re-configuram-me, transmitem-me o vírus,
Fazem crescer o vicio de querer ser perfeito
Neste mundo digital onde apenas bastam
Estes membros amputados de mim,
De um corpo que perdeu o mundo.


Hora de combater

O barulho de explosões
Abala os corpos e as mentes.
As mais fortes vibrações
Evidenciam a ruina eminente.

Já cheira a morte.
As feridas estão por sarar.
A sujidade ameaça contaminar
Tudo e todos.
Ninguém irá escapar a esta sorte.

Chegará a minha vez de combater.
Mas estou desarmado neste arsenal.
Como posso lutar com armas que não sei usar?
Como posso ser letal?
Quero genuinamente vencer,
Mas como? Como posso combater?

O vento sopra do lado inimigo,
Traz o cheiro de vitória e destruição.
Relembro o paraíso antigo,
Perco-me numa longínqua memória
Perante esta ausência de glória.

Chegou o momento!
À carga!!!

Rabiscos de fição política #1 - Nomeações


Que ambiente podre”, suspirou um.
São todos uns filhos da p…”, rugiu outra.

O corrupio nos corredores tinha cessado e o ambiente estava aparentemente calmo. As promessas caiam à medida que cada um ia revelando a sua máscara. Caíram até aqueles disfarces de quem os tinha esquecido que envergava por hábito. Estávamos em época de eleições, parecia estranho mas era tudo normal. Ainda ecoavam as frases feitas do costume e já se pensava em vinganças, umas para servir a frio outras a quente, quando fosse mais saboroso. Já os agradecimentos haveriam de ficar esquecidos como sempre.

Não é fácil fazer listas”, diziam.
“O mérito é aquilo que mais quero garantir na minha equipa”, aspiravam.
Eu mereço mais que ninguém”, revoltavam-se.

Tudo coisas gastas e que todos tinham ouvido e proferido vezes sem conta, sabendo que eram tão relativas como tudo o resto. O partido só não respondia porque não existia. No fundo aquilo era apenas um grupo de pessoas que pouco ou nada tinham em comum para além de acharem que gostavam de política, pelos moldes que os meios de comunicação a apresentavam e as más práticas deturpavam. Ou então era apenas um grupo porque eram pouco mais que um, cada um por si.

Injustiça, injustiça”, gritavam todos os excluídos.

Eram tantos aqueles cujas aspirações foram desfraldadas e em igualmente número os descontentes que, apesar de tudo, atingiam os seus objetivos. Mas como poderia ser de outra forma? Nunca se podia dar tudo a todos, especialmente porque quase ninguém sabia o que queria afinal. No fundo o que todos queriam era a felicidade, mesmo inconscientes da infelicidade que isso poderia proporcionar. A Democracia era aquela coisa estranha que trazemos na ponta da língua e longe da prática de exercício do poder. A democracia era aquela coisa que adjetiva sem substanciar.

Viagem ao buraco negro

Na orla do buraco negro,
Sanguessuga de luz,
Destruidor de matéria,
Vivi uma vida translúcida.

Refleti a escuridão,
Intensificada pelo pior de mim.
Fui o louco navegador
Que lutou inerte contra a gravidade.
Fui o inconsciente sábio
A quem todos aconselharam
Para que tivesse mais sabedoria.

A alma resistia a desprender-se do corpo.
Mas consegui mante-la
Perante a atração autodestruidora.

Fiz de conta que esqueci o medo
Para compreender esta força de atração.
Falhei porque escolhi a compreensão.
Acertei porque a perda de massa,
Do seu peso relativo,
Nunca me preocupou.

Banquete de Carne


As facas suspiram por carne,
Transpiram sangue de nervosismo.
Anseiam por serem afiadas,
Ainda que temam
Perder o sabor a morte do passado.

Peitos abertos
Costas assinaladas
Preparam-se na inocência
Para resistirem às facas.
Há quem prefira uma coxa para entreter.
Certamente se irão juntar
Nabos e repolhos,
Meramente decorativos.
No fundo interessa a carne,
Ainda viva,
Servida à mesa festiva.

Nem a música foi esquecida
Para abafar os gritos
Da dupla matança.
Na há refeição sem morte,
Não há vida sem medo,
Pois quem não temeu não viveu,
Apenas digeriu sem saborear.

A fome aperta,
As entradas já lá vão,
Devoradas com a pressa
De provar a carne.
Bom apetite.

Pura Crença

"Acreditem em mim
E tudo será maravilhoso."
Mas como podíamos acreditar
Numa coisa assim improvável
Que só pode ser credível
Com base na pura crença?

Um nojo

A borbulha explodiu,
Projetando pus pelo ar,
Libertando um cheiro
De fedor que sintonizou
Vómitos e excreções.

O ritmo da podridão
Avançou sobre vomitados e fezes
Que no calor corriam misturadas em diarreia,
Inevitavelmente estagnando,
Inevitavelmente borbulhando
E deixando uma espuma de dejetos
Que ritmava ao sabor da brisa agoniante
Do nojo de toda aquela paisagem.
 

O desfiladeiro

Entre neblinas que ocultam,
Persistem, rodopiando,
Obscuridades incertas,
Trazidas por ventos imprevisíveis.

A luz intermitente cinge-se
Ao mínimo suficiente,
Pois entre vales incertos
Reina sempre a penumbra.

Sobre os colossos de outros tempos,
Esculpidos da rocha pura,
Jazem as esperanças erodidas
Pelos elementos adversos
Desse ambiente desgastante.

A natureza das coisas
Cobriu-se de um manto de dor.
Enquanto dilacera,
Ao longo de muitas vidas humanas,
O desfiladeiro mostra as verdadeiras formas.
Enquanto sangra com chuvas
Lava as suas fragilidades.
Ficam as ruínas sólidas
Da sua verdadeira essência.


As palavras dos outros e as minhas

Escrevo como sei.
Escrevo por mim.
Não porque não me emprestem palavras,
Não porque não saiba onde as extrair,
Aquelas dos grandes mestres.
Mas porque as minhas me dizem,
Todos os dias, em jeito de bofetada,
Que ainda mal as sei usar.

Paraísos de outra dimensão

Suportamos cada coisa uns dos outros, somando às dificuldades inevitáveis da vida, que somos forçados a criar paraísos noutras dimensões.

A Queda de um Ídolo

Estava convencido ser de ouro,
Valioso, esteticamente talhado e estável,
Equilibrado na beleza e no peso
Que não temia cair com o vento
Enquanto irradiava o talento
Que lhe cobria o corpo enferrujado
De um interior metálico,
Nada nobre.

Só temia ser roubado
Por outro oportunista.

Aquele dourado era uma mera capa,
Renovada pela sua loucura,
Pela ilusão do seu valor.
Afinal até o peso desaparecia
Com a acção dos dias.
Era um metal não tratado,
Impreparado para a agressão
Interna do trabalho.

Com os anos apenas restava a película dourada,
Suportada pela estrutura precária.
Com uma derradeira brisa caiu.
Só o chão o amparou
Porque era o único sem hipótese de fuga.
Ficou derrotado num estilhaço sem reparo.

No fim vieram os reconstrutores.
Trituram os restos daquele ídolo.
Transformou-se em inerte,
Agora mais útil e verdadeiro
por todos o puderem finalmente pisar.

Vídeo do poema "Amigos quase Desconhecidos" ao vivo

 

Vídeo registado durante o 1.º Poetry Slam de Leiria, realizado no Atlas Hostel em Leiria, dia 19 de Março de 2017. Poema da autoria do declamador, Micael Sousa.

Palavras sangradas

Engasguei-me com umas palavras
Que escrevi mas nunca li.
Quando as ouvi
Perdi-lhes o sentido
Pois havia passado o dia
Em que as tinha vivido.

Risco mais uma quantas letras,
Mascaradas de sentido…
…mas neutras,
Num palimpsesto digital
Como se fossem alguma
Coisa de fulcral.

Procuro registar sentimentos
Com palavras arrancadas em ferida.
De que vale este ato de mutilação?
Quanto valem as palavras sangradas?
Valem só pelo facto de existirem.
Valem sem que lhes dêem valor
Por não se ver a chaga de dor.
Valem tanta como tudo o resto:
Tudo e nada.

A Arte de ser indispensável

"A arte de ser indispensável" é o título do livro que mais me marcou sem nunca o ter lido.

Vou Escrever um Livro

Um dia irei escrever um livro inteiro
Cheio de meias verdades,
Vazio de conhecimento:
O produto das minhas experiências.
Vou pedir a alguém para escrever por mim.
Só assim será verdadeiramente
Da minha autoria.