Copiar a autenticidade

Com a globalização, nesta era da crescente homogeneidade cultural, as cidades parecem querem assumir a sua identidade copiando modelos umas das outras. Quase todas sentem a necessidade de afirmar o seu nome com as mesmas letras.

Arrumar as coisas

Do suor que pinga do rosto
Fica o lavar das memórias
Avulsas acumuladas.
Com o tempo juntam-se coisas,
Indefinidas e sem utilidade presente
Para além de fazerem lembrar
Passados ocorridos.

O esforço de arrumar histórias,
Quando estas são materiais,
Estimula o corpo a falar com a mente.
A memória ganha peso e volume.
A memória existe até ser deitada fora.
A memória conversa por momentos.
O corpo responde,
Não quer ouvir mais,
Não pode suportar mais o peso do passado.

Coisas por arrumar,
Coisas para meter no lixo,
Guardando apenas o essencial.
Depuração do consumismo
De acumular tesouros inúteis.

Querer ordenar sem receio
De perdermos parte de nós
Obriga a um novo começo,
A um novo ciclo de acumulação
Limitado pela nossa capacidade de guardar
E saber quem somos para além das coisas
Que achamos que guardam a nossa essência.

A Maldição da Abstenção

Passava das 9 horas e ninguém estava a trabalhar. As ruas vazias de carros contribuíam para a descontaminação do ar, mas nem por isso o ar estava mais respirável. O vento esforçava-se por dar vida aqueles espaços abandonados. Só a natureza permanecia ativa nos seus hábitos antigos. Algumas árvores abanavam com o vento, colaborantes com as brisas errantes.
Tudo começara no ano anterior. Tinha havido eleições. O país em crise por pouco não se autodestruiu durante a campanha eleitoral. Posições radicais e extremadas. Pouquíssimos conteúdos no debate político e ainda menos soluções de futuro para aquela sociedade arruinada. Reinou o debate insultuoso e o ataque pessoal, em lutas por um poder fraco de um país que andava de rastos.
Mas no dia das eleições quase ninguém tinha ido votar. Ganhou a abstenção, como de costume, apesar de ninguém ficar indiferente à situação política do país. Contente ou descontente, ninguém se abstinha de dar uma opinião, tecer um juízo e até fazer uma proposta, por mais irrefletida que fosse. Estranhamente a tudo isso, poucos depois votaram.
Já por altura da saída dos primeiros resultados as televisões e jornais perdiam o interesse por divulgar mais notícias das eleições. Os comentadores deixaram de querer comentar as novidades e os pivots nada fizeram para os incentivar. As camaras desligaram-se e só os programas automáticos de publicidade encheram os media. Pairou a ilusão do consumo nos meios de comunicação até se esgotarem por si mesmos.
As pessoas começaram a abster-se da vida a partir desse dia. Era inconsciente e imparável. Foram limitando a sua existência ao mínimo, quais zumbis vazios de identidade e vontade. Tudo desacelerou até ficar estagnado na privação da ação.
Mais tarde, meses depois, alguns conseguiram sair do marasmo. A sociedade passada estava desfeita e a ordem social e política transformada. Foi uma oportunidade renovada para reinventar o futuro, pois puderam recomeçar e evitar os erros do passado. Haviam de cometer outros, mas não os mesmos.
Aquele fenómeno catastrófico ficou conhecido com a maldição da abstenção. Inúmeras pessoas desapareceram na sua individualidade. Outras souberam reinventar-se e prosperar.