O Abraço do Lis

Liso corre o Lis,
Lívido e sem vis
Hábitos de outrora.
Longe vai a hora
Com que galgava
A sua margem vaga.
Longe vai o tempo
Do certo contratempo
Que causava ao povo.

As invasões habituais longe lá vão.
As inundações catastróficas são
Só já uma possibilidade centenária.
As ruas, modernas e atuais, apesar disso,
Podem continuar no seu reboliço
E vida sem a água como adversária.

Corre o lis baixo.
Corre vale abaixo.
Corre manso debaixo
Dos muros que o guiam,
Dos olhares que o vigiam,
Dos elementos que o contagiam.

No fundo do seu leito,
Será que lhe dará jeito
Avistar as pedras talhadas
Colocadas já lavradas
Na amiga montanha,
Antiga e próxima penha,
Amiga do tempo antes desta raça
Que o encanou e a ela empedrou de baça.

Pedras humanas que rio e montanha embaraçam
Aproximam vidas humanas nas ruas e praças.
Por essas construções as naturezas se trespassam,
As edificações naturais são revestidas por couraças.
Dessa urbana e centenária acumulação nasceu cidade.
Nasceu leiria que olha rio e montanha, que olha com saudade
Um rio que a abraçava e agora corre submisso, por vezes omisso
Às suas próprias necessidades e vaidades dos vários tempos.
Nem subindo a cidade ao castelo de lá se vê o lis belo, nem isso.
Hoje a cidade já só abraça, mas não pode ser abraçada!


Os fins e os papeis que voam

Das secretárias nascem papeis.
Dos computadores tecla-se sem fim.
As pastas arquivam relatórios e leis.
O correio e expedição deslizam pelo cetim
Do manto que envolve a diária rotina,
Que à noite termina e logo começa na vespertina.

As tarefas mecânicas auxiliadas pelas humanas biologias
Transformam as atividades e condicionam as terminologias
Como um molde rígido, inquebrável repleto de uma patologia
Própria da humanidade contemporânea, da sua prisão de fantasias,
De que o sucesso é o fim último e o bem mais precioso deste tempo.
Vã inconsciência de quem abdica de apreciar o novo, o contratempo!

A rigidez da formalidade, até do que parece informal desgasta.
É nódoa que não se afasta, que corrói e mói porque devasta
A possibilidade da retidão na irreverência, mostrando competência.

Voltam e vêm os papéis, muitas vezes eletrónicos.
Redefinem-se também os outros papéis sociais,
Os tais que estão em constante mutação. São lacónicos!

Porventura rotinas são cada vez mais disfuncionais.
Porventura há quem as procure intencionalmente por naturais.
Porventura são afinal importantes para que constem dos anais…

Sessando o dia vem a noite sem inocência.
Sessando a irreverência vem a complacência.
Sessando o sonho fica só a eloquência
De poder sonhar e escapar à demência!

Uma insolação e ilusão

Quando à rua saio
sou alvo de um raio.
sou alvejado e trespassado
sem receio de ser magoado
do beneficio que o sol traz,
desse acaso que satisfaz.

Astro solar por perto há só um
mas a necessidade que cria
é incontável e quase sombria.
A necessidade existe enquanto há vida,
Independente da vinda ou ida,
Das almas, das órbitas dos planetas,
Dos egos que ofuscam outras vedetas,
Que não são mais que satélites
Insignificantes e iludidas elites.

Apesar do que é próprio aos próprios,
Do que faz distinguir uniões e consórcios,
Cada um por si precisa do seu quinhão,
Da luz que é energia e guia contra a servidão,
De ser senhor da vontade dos servos,
Que não sabem que podem ser mais que lerdos
Seguidores da inevitável vontade da escravidão.

Vendo o sol a cair ao fundo
Penso no absurdo do pensamento,
Nos delírios do sol em andamento.
É certo que também é infecundo,
E não apenas a fonte inesgotável
De obra gloriosa e durável.
Muita é a construção abalável!

O Sol que ajuda à imaginação.
O Sol que combate a depressão.
O Sol que faz novas edificações
Produz muitas ilusões enquanto
Aquece os expostos corações,
No seu natural diurno manto,

O tempo que nunca para

Pode o tempo ter gestão?
Pode o relógio ser manipulado
Controlado e rearrajado, por nós alterado?
Pode, mas só numa manipulação
Mecânica, momentânea e inútil,
Coisa subtil, pouco mais que ilusão fútil.

Não é ilusão, o tempo não para,
Como não para um viver consciente,
Uma ferida benéfica que sempre sara.
Atrasar e não viver como próprio ente
É não ser presente na próxima consciência,
É não ser o todo da nossa existência.

Não podendo procrastinar em verdade,
Resta-nos acomodar à condição da irmandade
humana que partilhamos e nos define,
Com a vontade de controlo que nos comprime,
E nos obriga a gerir os soltos vimes,
Para fazer o cesto entrelaçado de tempos
Em uniões tecidas de muitas lides,
Muitos compromissos e contratempos.

Resta-nos então saber tecer,
Ter a capacidade de criar um hábito
De fios de tempos para vencer
As limitações e o óbito
De desaparecer sem tempo,
De não ter um  que nos sirva de alento
A querer ter mais para gerir,
Mais tempo gerir sem anuir