Uma questão de Temperatura

Certo dia, o Calor e o Frio, que sempre andavam desavindos, e em sentidos opostos em tudo na vida, tiveram um choque frontal. Apesar da velocidade a que se deslocavam, foi a teimosia e casmurrice que levou ao evitável embate. A verdade é que nem o frio nem o calor se desviaram por orgulho. Do acidente resultou algo nunca visto: uma fusão! Este fenómeno de choque chocou todos, mas muito mais os amigos e conhecidos de ambos que agora não os podiam reconhecer. É que apesar do resultado acidental ter dado origem a apenas um, no interior do novo corpo continuavam a viver as personalidades dos dois. O Frio era calmo e ponderado, à excepção de quando se cruzava com o Calor é claro. O Calor era corajoso e extemporâneo. Assim, quando se tentava falar com um deles o tom da resposta e do temperamento eram aleatórios. Procurou-se então solução junto dos mais sábios. O Tempo, que era um dos mais experientes, inventou um artefacto a que chamou termómetro e que permitia medir, no momento, qual a personalidade dominante, se a do Frio ou a do Calor. O novo corpo partilhado passaria desde então a usar o novo talismã e não mais se confundiria o Frio com o Calor. Dizia-se que era uma questão de temperatura.

Nota: este foi um dos contos vencedores do concurso/desafio "per5pectivas", lançado em 2011 pela "ECO - Associação cultural de Leiria" e pelo Semanário Região de Leiria.

Quanto vale uma vitória perdida?

Quanto vale uma vitória
Quando se ganha sem glória,
Quando se perde ganhando
A honra que se foi edificando?
Os justos, tal como os ociosos e viciosos
Perecem de igual modo, novos ou idosos,
Mas deles fica a memória e lembrança.
Pelo menos a memória da justa dança,
Acompanhada da adequada música,
Sons da coerência que aplicaram na luta púdica,
Que ecoaram e se gritaram pelo campo de batalha!


Um dia os anais citarão os tais,
Os feitos irão sobrepor-se a tudo o mais!
Das derrotas de hoje jazem os mortos,
Dos seus corpos, que parecem absortos,
Nascerá um dia nova vida, novas vontades de pelejar,
Novas causas para se mobilizarem e disporem a almejar!
Pois sabem que a honra dos caídos é esperança dos reerguidos!

Que solidariedade

O que significa ser solidário?
Trata-se de um comportamento
Arbitrário, de origem involuntário?
Trata-se de um condicionamento,
Aparentemente, de completa liberdade?
Não! Pois os valores formam a maturidade,
E dependem da transmissão de saberes da comunidade.

Então e o que nos transmitem?
E se o que passou for o contrário?
Se nos ensinarem e só mentirem,
Ocultando a verdade e criando o temerário
Cidadão, incapaz de dar para receber,
De despender para recolher e se enaltecer,
Para desenvolver um diferente estar de ser.

A construção de algo diferente,
Faz-se pela vontade evidente
De perder más vontades,
De mudar mentalidades,
De crescer para aprender
A ser aquilo diferente do herdado,
Diferente do consumado e reforçado,
A ter um novo modo da realidade ver!

Dar é melhor que receber!
Pois dar é opção e receber uma obrigação...

A história da Martinha

Martinha era órfã, nunca conhecera os pais irmãos ou familiares, nem sequer sabia se teria mesmo irmãos ou irmãs, primos ou primas. Martinha cresceu e com ela a vontade de saber e conhecer as suas origens.
Por cada pessoa que via, que se cruzava na rua ou onde encontrasse vivalma, com traços e características físicas semelhantes às suas - pelo menos aquelas em que ela própria notava –, Martinha tentava e fazia por travar novo conhecimento.
Martinha, pela sua condição familiar – ou ausência dela – e sua natural curiosidade e necessidade de saber mais de si, de onde veio e porque veio ao mundo, acabara por conhecer pelo menos meio mundo. Não que metade do mundo fosse parecido fisicamente consigo, nada disso, mas porque cedo percebeu que nem todos os familiares são parecidos na imagem e aspecto – muitos são os pais altos com filhos baixos, as irmãs magras de irmãos largos -, que por vezes eram as personalidades que se herdavam e aproximavam os familiares uns dos outros. Assim, consciente da sua vontade de conhecer, conheceu, para além das pessoas com os cabelos, olhos, feições e fisionomias semelhantes às suas, as pessoas mais comunicativas e curiosas como ela. Depois, como pessoas conhecem mais pessoas, especialmente as que mais capacidades para comunicar têm, acabou por conhecer seguramente mais de metade do mundo. Embora não querendo, provou que a Terra era redonda, pelo menos à medida que a percorria a sessação que tinha era de uma vida que dava voltas e voltas, que sempre irá rodando ao seu tempo, com o tempo a passar.
Conforme ia vendo o mundo, as gentes que nele habitam, ia aprendendo novas línguas, conhecendo costumes e tradições, mas nem sinal da sua família. Martinha dava por esse nome como poderia dar por outro qualquer que tivesse ditado o destino. O seu fado fora nascer no dia de São Martinho, e, como era tradição nos privados de família, acabou por herdar do santo romano o latim do seu nome. Diziam alguns que a relação com Martinho era mais do que uma questão de calendário e nomenclatura, que era uma bênção do próprio santo que ela tinha recebido. Pois, ainda que involuntariamente, Martinha tinha abdicado da sua família para ganhar o conhecimento das Gentes do mundo, tal como Martinho tinha abdicado das suas vestes. Hoje, no dia de São Martinho, como todos conhecem a Martinha honram-na festejando também o seu pai de nome, lamentando que ela nunca tenha encontrado a sua família, mas, ao mesmo tempo, sentem-se felizes - num inocente egoísmos - pois por essa razão conheceram a doce e simpática Martinha.

Intenções e seus intentos

Vozes surdas,
ouvidos descuidados,
sensibilidades mudas
e pensamentos gorados

As intenções ter-se-ão perdido...
As intervenções são vazias!
As palavras tornam-se ocas de sentido!
As posturas geram comuns azias...

Mas e as intenções?
Ter-se-ão mesmo perdido?
Somente quem as teve poderá de facto responder...

Alegria e seus paradoxos

Sempre que alguém se sente alegra sente-se triste só se pode sentir triste pela sua tristeza. Se o Homem – quem diz o Homem diz também a Mulher - é um todo e a tristeza parte dele, quando todo ele é alegre e nem uma réstia de tristeza nele habita, então o Homem alegre não é completo. Até porque, já como referi, a pura alegria não existe, a não ser que desinventemos a tristeza, pois não será a alegria dela a tristeza da alegria e a tristeza da alegria o inverso do que acabei de referir? Pois sim! Se não podemos ser totalmente alegres então só nos resta ter alegria em parte. Mas como é a nossa melhor parte, aquela capaz de ser alegre que alegre fica, no fundo, e regra geral, podemos dizer que, arredondando sentimentos, de facto somos alegres e atingimos a alegria.
Não estou alegre com esta explicação para a alegria. Não estou pois o absoluto e uma explicação final não pode jamais deixar o intelecto alegre, pois se assim fosse como poderia continuar a procurar a alegria de questionar e procurar respostas. Um intelecto estagnado não é alegre. Mas depois voltamos ao paradoxo, se alegramos o intelecto entristecemos a estupidez. Assim, temos de optar pelo tipo de alegria queremos, mesmo sabendo que nunca será absoluta e completa. É assim a alegria.

Comer e perguntar

Qual o sentido de comer?
Qual a vontade de viver
sempre com fome de ter
de precisar de se prover?

A fome que não é normal,
aquela que vai além do carnal
e frugal sentido do animal
não será eticamente imoral?

Mas que suprimento é esse,
esse que alimente a presse,
essa benece de questionar
sem ter o que perguntar?

Tudo issso so poderá ser o maná
que  alimenta onde quer que o ser humano vá,
que alimenta a própria e elementar
existência de existirmos para perguntar!

Uma revolução lenta, um Portugal diferente

O país desmoronava-se… A antiga ordem, de característica desordem, cessou. Há quem diga que tudo ficou pior. Mas muitos diziam que preferem esta anarquia, destes dias, às injustiças camufladas de outrora.
Ninguém sabe ao certo como foi possível. Não houve golpes, não houve violência. Tudo se passou num continuar amorfo de autodestruição social. As estruturas sociais ruíram. Foi uma revolução sem precedentes.
Os Governos e o sistema financeiro caíram.
Agora só a capacidade humana de se constituir em grupos, mais ou menos organizados, nos permite viver. De toda a calamidade que atingiu o globo poucas realizações humanas restaram. Hoje as fronteiras são meramente culturais, sem ninguém que as vigie. A produção e trocas fazem-se quase ao nível mais primitivo da troca directa e da produção para a subsistência.
Por mais estranho que pareça, Portugal persistiu. Esta calamidade revolucionou Portugal. Todas as dificuldades contribuíram para o unir de um povo que já se habituara às agruras da vida, mas que, quando a necessidade aperta mais, lá “faz das tripas coração” e, como povo navegador, sempre fica à tona. Dos anos do primeiro choque um novo Portugal, que lembra o passado, emerge.

Mesas vazias

São estes momentos ininteligíveis,
estas conversas inaudíveis
que ecoam com os sons
estridentemente sem tons,
por simplesmente soarem a nada

Nada se percebe o que dizem.
Mas porque haveríamos de perceber?
Eu não, já me perdi a esquecer
aquilo que agora é audível e vem
junto do convívio da minha mesa.

É às mesas que se sociabiliza,
é nelas que se confirma o vazio
de uma sociedade que em tudo rivaliza,
especialmente pelo vazio,
pelo vazio cheio de vazio!

Transpirar é sentir e comunicar

Porque transpiramos? Não podíamos simplesmente não transpirar? 
Sim, claro, transpirar serve para regular a temperatura interna, pois no fundo somos uma termomáquina que necessita de regular a sua temperatura, ou não fosse falhar o funcionamento de qualquer uma dos nossos muitos órgãos – qual orquestra sempre afinada e, constantemente, controlado por um maestro que é o verdadeiro cérebro de tudo. Mas não será transpirar também um modo de comunicar, de expressar sentimentos e acções? O nervosismo, o cansaço e o esforço tornam-se adjectivos corporais via transpiração. E não nos enganará também a transpiração? 
Sim, obviamente que sim, engana quem transpira e quem vê transpirar. Primeiro porque nem sempre é evidente o motivo pelo qual os outros transpiram. Em Segundo, porque nem quem transpira sabe, por vezes, a razão para a sua própria transpiração e, pior ainda, está longe de a controlar. Assim, transpirar é natural, é algo primordial na nossa natureza, mas é também comunicar, premeditadamente e involuntariamente. Transpirar revela também as nossas fragilidades de falta de controlo – tão próprias da condição humana. Por vezes há odores quem incomodam a quem vai produzindo.

Um objecto para ler

Sou quadrado e pesado,
formatado toscamente pelo acaso.
A cor da armadura
à muito da memória se perdeu
ou se embutiu e desapareceu.
Melhor assim, pois nada perdura

Quem sou eu? Sou velho?
Ou fazem de mim velho?
Sim, serei aos olhos distraídos!
Que importa não ser compreendido?
Eu próprio nunca me darei por vencido,
e dos olhares fugazes não sigo juízos.

Sou uma pilha repleta de vida,
uma alma escrita rejuvenescida.
Pois cada página que se preenche
mais me enche e alimenta a essência
Sim, sou um livro fechado e contente,
com histórias para portadores de paciência.

Arcadas Castelo de Leiria de tons azulados e amarelados

Fotografia com filtro de máquina compacta

O Tédio do Conhecimento

Será este fenómeno universal?
Com tanta ilusão de diversão,
Com o fútil em constante invasão,
onde vive o saber de verdade?
E se não conhecermos a realidade?

Mesmo inseridos na turba senil silenciosa,
os sentimentos da tristeza nos assolam!
Não os sentimos pois cegam sem conhecimento.
Não vivemos o saber como sentimento.
Infelizes são os outros que mergulham no tédio,
aqueles que afinal procuram o vil remédio.

Vem a conclusão! Talvez o tema desta oração
beba do erro de análise e observação.
Pois justificar o senso perante os tediosos.
Então o problema é do sábio amador e imaturo!
Ele tudo que quer conhecer sem ser maduro
de sapiência, mesmo afastado e longe da selvajaria
muito se assusta, poucos cativa com sua sabedoria.

Pelo menos evite-se a morte intelectual
assumindo o tédio como algo de real,
fatal por nos ser fado carnal.

Tempo lento e cinzento

Cinzento este tempo lento
Que se arrasta sem vento,
Não desperta nem cria alento.
Cessa até no intelectual o movimento.

Passam as horas vagarosas,
Passam devagar e morosas,
Passam as somas delas em dias;
Passam esses somados em vidas.

Contam-se as existências indiferenciadas,
Subtraem-se as vivências justificadas
Pelo valor da distinção e da qualidade.
Resta reinventar esta nova modernidade,
Não por vaidade, mas pela necessidade
De uma nova realidade.